Zerar numeração de quadrinhos ainda é uma boa ideia?
A indústria de quadrinhos de super-heróis começou a tomar a forma que tem hoje em 1938, com o surgimento do Superman.
Em mais de 80 anos, é perfeitamente compreensível que tenham sido necessários reboots e relançamentos de tempos em tempos. Afinal, os mais importantes personagens se tornaram franquias e fenômenos de merchandising, e colocar um ponto final real em suas histórias seria suicídio comercial. Por outro lado, fazer com que esses personagens envelheçam em tempo real e mudem suas características físicas relativas à idade também não é muito viável. Um Batman de mais de cem anos de idade pulando de prédio em prédio não é exatamente o que os leitores esperam.
Então, começo aqui admitindo que sim, reiniciar a cronologia, como a DC já fez algumas vezes, ou fazer ajustes cronológicos através de retcons, como é mais típico da Marvel, é necessário para o andamento da indústria. Além disso, nestes casos, quando uma mudança grande acontece, seja cronológica ou de status quo dos heróis, é justo tanto com novos quanto com antigos leitores que um novo nº 1 seja estampado na capa. Por outro lado, entendo também que numerações baixas fazem bem para o marketing em qualquer ramo do mercado editorial, não apenas de quadrinhos. Portanto, o “mix mudanças radicais + renumerações” é uma receita para o sucesso, pelo menos por algumas edições.
Agora, o que acontece quando a renumeração começa a se tornar tão frequente que nem dá tempo de alguma mudança real no status quo dos personagens realmente ocorrer entre uma e outra?
Entre 2011 a DC radicalizou e comprimiu sua cronologia em apenas cinco anos, mudando passados de personagens, apagando outros e recomeçado alguns do zero. Ali não tinha alternativa, senão zerar tudo. Foi uma aposta arriscada, que se desgastou em poucos anos e, em 2016, foi substituída pela iniciativa Renascimento, que assume o fato de que a cronologia foi alterada nos Novos 52 e incorpora isso à narrativa.
Mesmo assim, é impossível esconder o gosto amargo da derrota comercial. Se a empreitada de 2011 tivesse dado certo, ela não precisaria ser desmontada. Passados quase dois anos do começo do Renascimento, a DC não estampa mais o selo na capa dos títulos, dando uma ideia de que as coisas poderão simplesmente seguir seu curso, sem um novo relançamento em poucos anos.
A DC teve a promessa que Superman voltaria ao número #1 quando Brian Bendis fosse assumir a HQ, ainda no primeiro semestre de 2018. Não teria mudança cronológica, a revista continuará abordando a dinâmica familiar dos Kent, segundo o próprio Bendis, então é praticamente impossível justificar com algo além do marketing essa renumeração.
Estampar nomes de iniciativas na capa também é uma prática da Marvel desde 2012, com Marvel Now. Desde então foram diversas reinicializações, sempre voltando aos números #1 de seus principais títulos ao final de cada uma, com exceção da mais recente, Marvel Legacy, que fez o caminho inverso.
Ou seja, em Legacy a editora somou os números de todos os volumes de suas HQs e passou a estampar numerações altíssimas nas capas, dando uma ideia de tradição e retomada de conceitos clássicos. Legacy deu esperança também a leitores como eu, que pararam de acompanhar a Marvel como universo (admito, jamais larguei o Homem-Aranha e sempre dou aquela olhadinha nos títulos dos mutantes) justamente pelo excesso de novos selos, iniciativas e números #1.
Ver tanto Marvel quanto DC abraçando seus legados e retomando conceitos era tudo que um fã das duas editoras poderia querer. Pena que durou pouco, na época Casa das Ideias anunciou que ainda no primeiro semestre iniciaria a fase Fresh Start, que sucedeu Legacy, com uma enxurrada de novas “primeiras edições”.
O que me incomoda em cada uma das editoras não é ter um novo número #1 ou um novo nome de iniciativa. O problema é quando isso se torna um padrão, que leva a um relançamento atrás do outro, em espaços de cinco anos, três anos, ou até menos. A mesma DC Comics que segurou uma cronologia e numerações por 25 anos, depois de muito tempo partiu para o terceiro Superman #1 em menos de 7 anos.
Eu nem sei dizer quantos número #1 de cada um dos seus heróis a Marvel lançou nos últimos anos e posso lembrar de quando eles falaram, na época que era assumir os números altos nas capas. Entendo que numa época em que as HQs concorrem com games e serviços de vídeo por streaming, os setores de marketing precisam trabalhar mais e que algumas medidas desesperadas e têm que ser tomadas, mas o potencial consumidor não tem a memória tão curta.
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Lembro da promessa de que a iniciativa Legacy era o melhor para o futuro da Marvel, feita pela editora há poucos meses na época. Aguardava ansioso pela chegada da nova fase no Brasil, mas com o anúncio de Fresh Start e, mais uma vez, o discurso de que esse é o futuro da editora, me senti enganado, e acabei não lendo a maioria dos títulos. Portanto, um potencial consumidor não se tornará consumidor e, muito menos, leitor.
Quantos mais tiveram o mesmo sentimento? Centenas? Milhares?
Talvez seja hora das estratégias de marketing serem repensadas nas duas casas dos maiores heróis da cultura pop.